O desejo de ser princesa

Rosângela Trajano

Um dia, conheci um poeta que dizia “sonho que se sonha só é só um sonho; sonha que se sonha junto é realidade.” Procuro por alguém para sonhar junto comigo desde os meus oito anos de idade. Na minha infância, convivi muito com a minha bisavó e primas mais velhas que cuidavam de mim enquanto mamãe viajava vendendo roupas. Todas elas gostavam de me contar contos de fadas onde sempre existia uma princesa loura e de olhos azuis frágil à espera de um príncipe para salvá-la do perigo. As princesas moravam em castelos. Eu achava possível me tornar uma princesa, talvez o que me impedisse era o fato de não ter um castelo porque morava numa casa pequenina. Sim, era isso o que eu pensava que me impediria de ser uma princesa. Contudo, eu ouvia aquelas histórias e desejava imensamente lá no fundo da minha alma ser uma daquelas princesas. Sempre disseram que eu era uma criança bonita, então podia ser uma princesa. Carreguei aquele desejo comigo por muito tempo até chegar na escola primária, atual fundamental I. Certo ano, a professora me convidou para ser a princesa da escola na festa junina. A festa de São João na minha cidade é muito comemorada. Há sempre quadrilhas, rainhas, princesas, noivas, padres etc. Mas para ser princesa teria de vender muitos caroços da espiga de milho desenhada num papel. Eu fiquei bastante feliz com a possibilidade de ser uma princesa. Cheguei em casa e contei para todo mundo que logo ajudaram a comprar os caroços da espiga de milho. Rapidinho preenchemos a espiga. Toda contente, mamãe levou o dinheiro da espiga à escola. Mas deram outra folha. Para ser princesa era preciso vender muitos caroços da espiga de milho. Lembro-me que quebrei meu porquinho, juntei meu dinheiro do lanche e pedia a todo mundo que chegava na minha casa para comprar um caroço da espiga e as pessoas me ajudavam. Eu vendi muitas espigas. Todos os dias, mamãe levava o dinheiro de uma espiga preenchida. Quando terminaram as vendas disseram que o resultado sairia no dia da quadrilha junina. Eu fiquei ansiosa. Mamãe mandou dona Joaquina, a costureira da rua, fazer um vestido novo para mim. Eu estava radiante de alegria. A princesa ganharia uma coroa igual a de uma rainha. Como eu tinha vendido muitas espigas sabia que seria a escolhida. Passei dias pensando naquele momento. Nem dormia direito. Pela primeira vez na vida gostava de ir à escola. Finalmente o tão esperado dia chegou. Mamãe viajava. As minhas primas que me arrumaram para aquele momento. Eu estava linda e pronta para receber o título de princesa. No meu pequeno mundo não importava que eu não fosse ser uma princesa de verdade, pois para mim princesa de quadrilha junina e as dos contos de fadas eram tudo iguais. Era tudo princesa. No dia da festa, havia muitos convidados na escola. Gente que eu nunca tinha visto. As outras meninas que concorriam junto comigo ao título de princesa também estavam eufóricas e bonitas. Antes do resultado nos colocaram numa fileira e eu fiquei na terceira posição. Tiraram muitas fotos nossas. Meus olhos brilhavam de alegria. Teve muita quadrilha, gincana, pescaria, comidas típicas e a gente aguardando o resultado que para a minha angústia ficou para o final da festa. Cada minuto que passava me deixava mais ansiosa. O coração batia acelerado, as mãos suavam e meu pezinho direito balançava. Finalmente, chegou o momento de anunciar a princesa da quadrilha daquele ano. A diretora trouxe uma coroa nas mãos para coroar a vencedora. No meu íntimo dizia para mim mesma que seria eu, mas quando vi a diretora passar por mim sem nem me olhar e coroar a menina da primeira posição da fila perdi o chão. Enchi os olhos de lágrimas. Mandaram eu abraçar a vencedora e demais colegas. Por que não fui eu? Era a pergunta que machucava a minha alma. Pela primeira vez na vida senti inveja e raiva de alguém. Tive vontade de empurrar a menina. Desejei tomar a coroa dela, desejei ser ela. Muita coisa eu não entendia. Disseram que ela tinha vendido mais caroços de milho do que todas as outras meninas. A garota também era loura e de olhos azuis bem diferente de mim. Fui para casa segurando na mão da minha prima, graças a Deus tinha a sua mão para me segurar porque eu estava prestes a cair. Foi ali onde morri pela segunda vez na vida, a primeira vez não importa neste relato. Era tão difícil para mim compreender tudo aquilo. Como eu sabia que mamãe não gostava de me ver chorando por besteira tratei de engolir o choro e enxugar as lágrimas no meio do caminho. Sim, para todos ser princesa da quadrilha não significava nada. Mas, para mim era como se tivessem me roubado o meu único sonho de menina. Lembro-me de que não dormi bem naquela noite. Fiz xixi na cama coisa que não fazia há três anos. Quando a minha mãe viajou no dia seguinte, pude chorar as minhas lágrimas no colo de Mãe Xiquinha, a minha bisavó que cuidava de mim e dos meus irmãos. Longe dos olhares alheios e que sempre me julgavam de menina mimada eu tinha ali a minha confidente, a minha amada bisavó que me compreendia e logo percebeu que eu estava febril. Então, ela pegou três raminhos de arruda e, imediatamente, me curou daquele mau olhado. Sim, era mau olhado porque os raminhos murcharam rapidinho. A minha bisavó pediu para eu ficar na cama enquanto fazia um chá para mim, não lembro de quê. Ela ficou toda preocupada com a minha febre. Eu só chorava. Aproveitava o fato de estar sozinha com ela e poder desabafar toda a minha tristeza e sofrimento que corrompiam a minha alma de menina sonhadora. Passei o dia todo com febre. Também não quis comer nada. Era preocupante o meu estado de desânimo. Sozinha no meu quarto, escondi os meus livros de contos de fadas embaixo da cama. Nunca mais iria ler nenhum deles. Daria um fim a todos eles. Se não podia ser princesa para que ler tudo aquilo? Perguntava-me. Também não quis mais assistir aos filmes de desenhos animados que tanto adorava do Walt Disney sobre princesas. Na verdade, eu não queria mais nada. Só queria morrer. É possível uma menina de oito anos querer morrer? No meu caso, sim. Quando mamãe chegou de viagem no dia seguinte, contaram da minha doença para ela e logo fui levada ao médico. No hospital, o médico verificou a minha temperatura e confirmou o estado febril. Achou que pudesse ser alguma infecção ou coisa parecida, mas não era. Era tristeza, quis dizer isso a ele. O médico passou vários exames. Eu fiz todos e não deu nada. Depois de tudo, ele disse que talvez fosse febre emocional e perguntou se eu tinha perdido alguém especial nos últimos dias. A minha mãe disse que nada de errado tinha acontecido nos últimos dias. O episódio da festa junina não era nada para ela. O médico passou um remédio e nos mandou de volta para casa, mas se a febre continuasse seria preciso voltar para fazer novos exames. A minha prima contou à mamãe do quanto eu fiquei triste com o resultado da princesa da escola e ela achou injusto. Resolveu ir falar com a diretora. Eu tinha alguém para me defender. Fiquei contente. Mamãe lutaria para que eu fosse a princesa e não a outra. Ela bem que tentou argumentar para a diretora, mas não deu em nada. Foi a filha dela quem ganhou a eleição com muitos caroços de espigas de milho vendidos, o dobro dos meus. Mamãe voltou brava para casa e me pediu para esquecer aquilo. Eu disse que sim, esqueceria. Uma das minhas primas achando pouco a minha dor falou que nunca viu princesa negra, talvez por esse motivo a outra menina tivesse ganhado porque era loura e de olhos azuis. Chorei mais ainda. A partir daquele dia comecei a ter raiva do meu corpo, da cor da minha pele negra, dos meus cabelos crespos, dos meus olhos trocados e pretos. Descobri, assim, que jamais seria uma princesa. Peguei um dos livros de contos de fadas que tinha escondido embaixo da minha cama e lá estava uma princesa loura e de olhos azuis sorridente. Peguei outro livro e era a mesma coisa. De fato, não existiam princesas negras. Ser negra nunca foi nada demais para mim, pois na minha casa ninguém falava naquilo. Mas, a partir daquele dia eu senti que teria problemas com a cor da minha pele. Jamais seria uma princesa. Tinha que inventar outro sonho para mim. Não podia mais brincar com os meus irmãos de ser princesa. Todas as noites quando ia dormir pedia para Papai do Céu me deixar loura e deixar meus olhos bem azuis. Quando acordava estava da mesma cor. Nada mudava em mim da noite para o dia. De repente, me veio o pensamento de quantas meninas iguais a mim desejariam ser princesas e nunca poderiam, se ao menos eu conhecesse uma delas para poder saber como fazer para não ficar tão triste seria tão bom. Mas, eu não conhecia quase ninguém. Passei a brincar com as minhas bonecas de pano de outras coisas. Elas não eram mais princesas. Nenhuma delas. Apesar de serem louras, se eu não podia ser princesa elas também não poderiam. Passaram a ser médicas, professoras e dentistas. Quando me pegava sozinha sempre chorava um pouco. As férias escolares do meio do ano foram boas para aliviar a minha dor. Os meninos da minha rua ficaram sabendo através dos meus irmãos do meu sofrimento de não ter sido a escolhida como princesa da escola e começaram a rir de mim. Foi constrangedor. Cada um que dissesse uma coisa diferente. A gente não brincava na rua, mas os meninos vinham ao portão da minha casa só rir de mim me chamando de “perdedora”, “chorona” e “princesa falsa”. Para me alegrar um pouco, mamãe me deu uma boneca nova de presente que trouxe de Recife. Também ganhei um cofrinho novo em forma de porco da minha prima. As aulas voltaram e eu não quis mais ir à escola. A minha mãe sem entender nada por que para ela os estudos eram a única coisa que podia nos oferecer me obrigou a ir. Cheguei à escola com cara desanimada. A professora nem percebeu a minha tristeza e me colocou para sentar-se na primeira carteira da fila. Ela me achava muito inteligente. Um dos colegas da sala de aula morava na minha rua e contou para todos ouvirem que chorei porque perdi o concurso de princesa. Todos riram de mim. Inclusive a professora. Depois ela me falou que aquele concurso não era nada demais. E que eu poderia vencer o próximo era só me esforçar para vender mais caroços de espigas de milho. Chegou a hora da merenda e eu não tive vontade de merendar. Voltei para casa, tristonha. Fazia mais de um mês que eu estava tristonha e ninguém percebia aquilo. Tinha parado de chorar e a febre passara. Na minha casa tristeza nunca foi doença. Na minha casa ninguém podia ficar triste porque tinha comida, brinquedos e remédios. Era isso que mamãe dizia para gente. Eu sempre conversava com a minha bisavó Mãe Xiquinha. Ela era a minha melhor amiga. Nela podia confiar. Então, decidi perguntar para ela se Papai do Céu atendia todos os nossos pedidos e ela confirmou bastava acreditar nEle. Continuei rezando o Pai Nosso meio atrapalhado porque eu nunca fui de decorar coisas, muito menos orações. No fim das minhas orações pedia sempre para Deus me deixar loura e de olhos azuis. Ele nunca me ouviu. O meu pedido nunca foi atendido. Deixei de acreditar em Papai do Céu, como Ele podia fazer uma menina sofrer igual a mim? Talvez ele nem existisse e fosse invenção dos adultos. Os adultos inventavam muitas coisas às crianças naquela época. Eu via a minha bisavó curar as pessoas e elas voltarem para agradecer. Só eu que ela não conseguia curar. Só a minha dor ninguém conseguia aliviar. No fundo eu não tinha desistido de ser princesa. Aliás, nunca desisti. Até hoje trago esse sonho comigo, mas hoje sei que há princesas negras. Ainda guardo no porão da minha casa os meus livros de contos de fadas que vez por outra costumo folhear para lembrar da minha infância. Convivo com muitas crianças atualmente, principalmente meninas. Observei que algumas também sonham em ser princesas, principalmente as meninas negras. Porém, ainda vejo filmes em que só aparecem princesas louras e por muito tempo desejei ser a princesa Lady Diana da Inglaterra. No dia da sua morte chorei igual criança e já contava mais de vinte anos de idade. Ela era tudo o que eu sempre quis ser, ou seja, uma princesa loura de olhos azuis e que ajudava as pessoas mais pobres. Achava bonito quando a televisão a mostrava fazendo caridades pelo mundo. Depois soube do quanto sofreu no seu casamento e descobri que princesas também sofrem decepções. No meu mundo imaginário as princesas viviam felizes em seus castelos. Quando criança achava também que nunca seria uma princesa por não ter um dragão. Na minha casa tinha patos, porcos, carneiros, pássaros, menos um dragão. E pedi para a minha mãe comprar um numa das suas viagens, ela apenas sorriu e me disse que se achasse um na feira compraria para mim. Eu fui a menina mais boba do mundo. Até hoje desejo ganhar um dragão de presente. Às vezes eu me sentia feliz com as minhas bonecas e as brincadeiras dos meus irmãos no quintal da minha casa, noutras me sentia triste porque queria sempre que eles fossem os meus soldados a me protegerem enquanto princesa e eles não gostavam das minhas brincadeiras. Meus irmãos gostavam de brincar no mangue que havia perto da minha casa, mas eu não gostava. Achava o mangue sujo e feio porque me deixava mais negra do que eu era. Aos oitos anos eu já odiava a cor da minha pele.  Aprendi a força que ser uma menina negra a gente sofre por quase tudo nessa vida, menos por amar. E é por isso que eu amo tanto as pessoas. Hoje, tenho cinquenta e um anos e sou uma mulher negra feliz e continuo desejando ser princesa. Vocês acham que conseguirei ser princesa algum dia? Vocês gostaram da minha história?

FIM