Rosângela Trajano

Sapatinhos furados

A menina das cocadas

Não tinha quase nada

Era pobre, tadinha

Mas queria comprar toda a vitrine da loja da esquina

Com seus sapatos furados

Andava por lugares longiquos

Mais longe parecia de si

Ao sentir fome

E querer comer pedra

Tropeçava nos sonhos

Dormia numa calçada

Um dia perdeu os sapatos furados

Perdeu não, roubaram-lhe

Como também roubaram-lhe sua esperança

Descalça pelas ruas

Procurava o sentido da vida

Nos rostos dos adultos apressados

Onde morava o chão era de concreto

Não havia cheiro de terra

O céu parecia mais longe

Havia um menino na janela do vigésimo primeiro andar

A menina achou um par de sapatos no lixo

São de um morto, morreu hoje

Disse a velhinha assustada

Da menininha boquiaberta

Eu tenho mais medo de gente viva

Calçou os sapatos e se foi

Como quem vai passear em luas de outono