Betina e a bruxa do parque

Rosângela Trajano

Era uma vez uma princesa chamada Betina. Por qualquer coisa corava o seu pequeno rostinho. Morava num palácio rodeado por um enorme parque florestal, perto de um povo feliz e trabalhador.

Quando criança, a rainha levava Betina para passear no parque. Depois que cresceu acostumou-se a fazer o seu passeio matinal todos os dias pela linda floresta onde aprendeu a conversar com as árvores.

Betina era conhecida por ter sonhos lindos, chamavam-na da menina dos sonhos. Todas as manhãs, no café, contava aos pais o sonho que teve na noite passada. Sonhava com cavalos brancos, duendes, gnomos, fadas e, principalmente, com um lugar cheio de luz, silêncio e estrelas que ela nunca descobria onde ficava.

O rei acreditava que a felicidade de Betina eram seus sonhos lindos e por causa disso o rei não queria que ninguém tivesse sonhos ruins na corte e quem os tivesse deveria contá-los às árvores, pois elas tinham o poder de destruí-los, assim como tinham o poder de dar frutos.

Nenhum sonho ruim tornava-se realidade se fosse contado a uma árvore confirmou uma fada, certa vez. Mas, se alguém contasse o sonho a um ser humano esse seria realizado. E assim o povo seguia as ordens do rei. Quanto mais forte e grande fosse a árvore mais fácil seria destruir o sonho ruim.

Betina passeava pelo parque feliz da vida contemplando a luz do sol, o canto dos pássaros e a sombra das árvores. Ela costumava comer jabuticabas e amoras. Adorava conversar com as jabuticabeiras que lhe contavam tudo sobre os outros mundos.

Certa noite veio uma chuva forte, relâmpagos iluminavam as casas, raios caíam nas florestas. Uma ventania brava arrastava tudo que via pela frente. O povo estava aflito. O rei não sabia o que fazer.

Enquanto isso a rainha virava-se para um lado e para o outro na cama sonhando com uma cobra enorme à sua frente querendo engoli-la. A rainha gritava, suava e esperneava. Mas, ninguém conseguia acordá-la. O rei e Betina estavam desesperados.

Quando a chuva passou a rainha acordou, aflita. Abraçou o rei, contou do seu sonho e pediu-lhe proteção. O rei prometeu que nunca mais ela sairia de casa sozinha e escolheria seus dois melhores soldados para protegê-la da cobra.

O dia amanheceu. Betina preparou-se para ir com a sua mãe ao parque. O rei já tinha escolhido dois valentes soldados com espadas de ouro para protegê-las.

No parque, Betina e sua mãe caminhavam de mãos dadas um pouco à frente dos soldados.

Era uma manhã bonita. O tempo não estava nem quente nem frio. O sol parecia sossegado. Algumas árvores ainda dormiam. Os pássaros já cantavam em seus ninhos. E os coelhos já corriam de um lado para o outro. Tudo parecia calmo. Até que um raio transpassou o tronco de uma árvore de 84 metros de altura que caiu no meio do caminho das duas.

A rainha e Betina ficaram assustadas, porque começaram a cair raios de todos os cantos da floresta. Os soldados tentaram protegê-las com seus escudos. E logo o dia virou noite. Uma gargalhada horrível foi ouvida por todos na floresta:

— Ah! Ah! Ah! Ah!

Os animais se esconderam em suas casas. As folhas das árvores ficaram imóveis. O vento parou. A correnteza do rio silenciou-se. A gargalhada continuava:

— Ah! Ah! Ah! Ah!

Os soldados procuravam o lugar de onde vinham aquelas gargalhadas, mas não encontravam. A rainha abaixou-se para limpar os sapatos sujos de lama, e de repente um raio caiu sobre ela que virou formiga de roça. Betina ficou assustada. Ordenou que os soldados pegassem a sua mãe e guardassem-na em suas mochilas.

Mas, havia muitas formigas de roças por ali e elas estavam picando com força. Quando Betina olhou outra vez para os soldados estavam com o corpo cheio de formigas. Defendiam-se como podiam.

Betina estava assustada. De onde vinham aquelas gargalhadas? O que diria ao seu pai sobre a sua mãe? Qual daquelas formigas seria sua mãe? Não podia fugir e deixar a mãe sozinha ali. Agarrou-se no tronco de um abacateiro e implorou por ajuda. Mas a árvore parecia morta. Seu coração não batia e nem respirava.

No desespero nem percebeu que estava pisando em muitas formigas de roças e assustada gritou por socorro. As formigas estavam crescendo de tamanho, e de repente ficaram enormes. Estavam comendo as folhas das árvores. Ainda bem que não comiam gente.

Betina gritava por socorro. Mas quem a ouviria? De repente um outro raio caiu de frente para ela e apareceu uma mulher horrível, desdentada, cabelos arrepiados, vestido e sapatos pretos, com uma vara na mão direita e um gato preto no ombro esquerdo.

— Olá, Betina! Ah! Ah! Ah! Ah!

Era um vozeirão grosso e assustador.

— Quem é você? O que quer de mim?

— Eu sou Zulaia. A maior bruxa do mundo.

— Diga logo o que quer de mim?

— Quero os seus sonhos maravilhosos! Aahhhhh!

— Miauuuuu!, o gato preto miava copiosamente.

— Como posso dar-lhe meus sonhos maravilhosos?

— Você sabe como. Conte-me.

— Os sonhos são meus. Somente meus. Não vou contar nada para você.

— Estou cansada dessa gente que só vem contar sonho ruim pra mim.

— As pessoas não contam seus sonhos ruins para você. Elas contam às árvores.

— Mas, eu finjo que sou árvore. Ah! Ah! Ah! Ah!

— Sua bruxa! Não vou contar nada para você!

— Esperei esse tempo todo que um humano sequer contasse um sonho lindo para mim, mas ninguém parece ter sonho bom nesse lugar. Só você, Betina! Só você tem sonhos maravilhosos! E eu quero saber quais são!

— Eu não vou contar nada para você! Nada, ouviu bem?

— Não vai não, Betina? Quer provar os poderes de uma bruxa?

— Não tenho medo de você. Deixe-me voltar para casa, por favor.

—Você vai para casa, sim. Vai para sua nova casa.

Betina pisou no pé da bruxa Zulaia e correu, mas não foi muito longe. A bruxa apontou com o dedo direito de onde saiu um raio e transformou-a numa enorme cobra. O gato ficou todo arrepiado!

As árvores ficaram mais assustadas ainda. Betina tinha mais de dez metros de comprimento. Era uma cobra vermelha. Colocava a língua para fora e para dentro. Era uma cobra muito grossa. Nenhum homem poderia chegar perto dela sem sair vivo.

— Isso é o que acontece com quem desafia Zulaia. O seu feitiço só será desfeito no dia em que um homem conseguir enfiar uma espada na sua cabeça. Coisa que duvido muito que aconteça.

E assim viveu Betina anos e anos dentro do parque. O povo da corte não freqüentava mais o parque, porque a história da cobra venenosa e gigante tinha corrido os quatro cantos do mundo. O rei ficou triste com a perda da rainha e com a notícia dos seus soldados de que a bruxa Zulaia tinha transformado a princesa numa cobra.

O rei decretou que o homem que desfizesse o feitiço da sua filha se casaria com ela. Mas os dois únicos homens corajosos que apareceram foram engolidos pela feroz cobra.

Com saudades de casa a cobra passou todas as noites a sair das águas do rio e deitar na sua cama nos aposentos do palácio. Ali ficava deitada até o início da manhã. Na primeira vez que fez isso o povo assustou-se. Foi um alvoroço. Quiseram matar a cobra, mas o rei impediu. Afinal, era a sua filha. Depois o povo acostumou-se com o passeio da cobra todas as noites até os seus aposentos para dormir.

Um dia apareceu um engraxate na corte. Um rapaz magro, distraído e tolo por demais. Tropeçava em tudo. Morto de fome roubou três pães da padaria e foi preso pelos soldados da corte. Naquele reino quem roubasse passava o resto da vida preso no porão, foi informado daquilo assim que ali chegou, mas estava faminto.

Levado até o rei confessou que nada tinha na vida: família, amigos, casa, roupa, lembranças e passado. Era um pobre coitado.

— E coragem?

— O que, senhor rei?

— Coragem. Você tem coragem?

O engraxate coçou a cabeça, balançou a perna esquerda e ficou a pensar que devia precisar de muita coragem mesmo para viver daquele jeito.

— Sim, senhor rei. Tenho coragem.

— Então me prove. Eu lhe dou todo o tesouro do meu reino e a minha filha em casamento.

—E o que eu tenho de fazer?

— Enfiar uma espada na cabeça dela.

O pobre engraxate tomou um susto ao ouvir aquilo. Como enfiaria uma espada na cabeça de uma princesa? Que coisa horrível!

— Por que devo enfiar uma espada na cabeça da princesa?

— Porque a bruxa fez dela uma cobra.

— C-o-b-r-a?, tremeu-se o engraxate.

— Sim. Uma enorme cobra. Hoje à noite você poderá vê-la Todas as noites ela vem dormir no castelo.

O engraxate não era ambicioso. Não queria o tesouro do rei. Queria apenas uma casinha com uns porquinhos para ter uma vida digna. E não aceitou a proposta. Mas, o rei insistiu mostrando a foto de Betina para ele. O rapaz ficou encantado ao ver a foto da moça linda que parecia sorrir.

— Tudo bem. Eu aceito. Vou lutar com a cobra.

Quando a noite chegou o engraxate ficou escondido por trás de uns sacos de açúcar para ver a cobra entrar no castelo. Ele tomou um susto ao ver aquela cobra enorme se arrastando pelas ruas com a língua para fora, pronta para dar o bote. Deu sua palavra ao rei e não podia voltar. Se não cumprisse com sua promessa teria sua língua arrancada. E viver sem casa, comida, roupa, família e tantas outras coisas até que dava, mas sem língua nunca, pensou.

O jovem engraxate observou a cobra por três noites consecutivas. Num sábado decidiu que seria o dia de pegar a cobra. Pediu uma espada ao rei que lhe deu uma de ouro. Esperou que a cobra entrasse nos seus aposentos e dormisse. Antes dela entrar nos aposentos, ele chegou primeiro e já esperava por ela. Esperou que dormisse, mas foi em vão. Ele não sabia que as cobras não fecham os olhos e logo não se sabe se elas estão dormindo ou não.

Passados alguns sábados decidiu enfrentar a cobra cara a cara. E quando essa dormia com os olhos abertos, ele pulou à sua frente e tolo como era bateu no vaso de água próximo da cama da princesa que caiu no chão fazendo um barulho enorme.

A cobra acordou. Movimentou-se. Estirou a língua para fora. O engraxate apavorou-se. Precisava enfiar a espada na cabeça da cobra, mas ela se mexia muito. Foi enfiando a espada por varias partes da cobra. A cobra revoltou-se e num só movimento deu-lhe uma pancada tão forte que o coitado foi cair do outro lado do castelo, quase morto.

O rei já não tinha mais esperanças com o engraxate. Estava decidido a procurar por outro homem corajoso. Bem que torcia por ele, mas por ser muito tolo e distraído a cobra sempre lhe dava o bote.

Assim o rei acabou dispensando o engraxate mandando-o embora do reino, porém o engraxate não conseguia esquecer aquele rosto lindo que tinha visto na foto. E se aquela cobra realmente era a princesa da foto ele iria salvá-la daquele feitiço.

O engraxate entrou no parque, local onde ninguém tinha coragem de ir. A bruxa Zulaia percebeu sua intenção de salvar a princesa e colocou à sua frente um dragão. O engraxate lutou com coragem. Não foi fácil. Teve que se esconder atrás das árvores, pular de um galho para outro, cair em buracos, se esconder atrás de pedras. E o dragão soltando fogo pela boca e batendo suas asas enormes. Até que uma fada apareceu e lhe deu uma baladeira com uma única pedra. Era preciso acertar o dragão. O engraxate percebeu que aquela era sua baladeira de quando criança e que aquela pedrinha era do rio onde tomava banho todas as manhãs. Não contou conversa. Pegou a pedrinha colocou na baladeira e apontou para o dragão. Depois esticou a baladeira e soltou-a com força. A pedrinha voou em direção ao dragão que batendo nele fez com que virasse bolhinhas de sabão. O engraxate sorriu, porque as bolhinhas pareciam com as da sua infância, também.

A bruxa Zulaia ficou danada com aquele rapazinho de nada. Resolveu ela mesma aparecer e lutar com ele. O rapaz não tremeu dessa vez. A bruxa aproximou-se dele. Distraído nem percebeu o galho de uma árvore e bateu com a cabeça nele, quebrando-o e fazendo-o cair em cima da bruxa. A bruxa desequilibrou-se e foi ao chão.

O engraxate amarrou a bruxa Zulaia numa mangueira. O engraxate começou a fazer muitas cócegas na bruxa e disse que só pararia se ela desfizesse o feitiço da princesa. Não aguentando mais tantas cócegas a bruxa acabou contando o segredo da sua magia.

— Só um homem corajoso seria capaz de trazer Betina de volta a forma de mulher, disse ela para o engraxate.

 A fada apareceu e transformou a bruxa numa linda borboleta. O engraxate achou os sapatos da bruxa bonitos e guardou-os para engraxar algum dia.

O gato da bruxa foi acolhido pelo engraxate e com ele seguiu caminho atrás da princesa.

O engraxate subiu num pé de oiticica e ficou à espera da cobra sair naquela noite para seus aposentos. Assim que ela colocasse a cabeça para fora da água ele enfiaria a espada nela. Mas, naquela noite a cobra não apareceu. Nem naquela noite, nem em nenhuma outra noite mais. Ele ficou desesperado. O que teria acontecido com ela?

Decidiu mergulhar até as profundezas do rio. E lá chegando viu a cobra tristonha, chorando sua desgraça. Tinha cansado de ser cobra. Tinha cansado de ser temida por todos. Mas, o engraxate sabia que cobra é cobra e pode dar um bote a qualquer momento.

Então, ele lembrou-se dos sapatos da bruxa e teve uma ideia. Jogou os sapatos para cobra que se distraiu com a beleza daqueles sapatos. O engraxate aproveitou a distração da cobra e colocou-se em cima dela, puxou a sua espada e enfiou na sua cabeça com toda força que pôde. A água que era cheia suja virou clarinha, clarinha. As escamas da cobra viraram pedra. O veneno da cobra virou chuva fina na corte.

Imediatamente, a cobra virou a princesa Betina. O engraxate que estava pendurado em cima da sua cabeça caiu à sua frente, sentado, todo desajeitado.

A princesa olhou para ele, corou o rosto e sorriu. Betina descobriu que todas às vezes que seu rosto corava nascia um peixinho vermelho no rio, isso explicou aos pescadores a existência do surgimento, de repente, de tantos peixes vermelhos no rio.

 Os dois subiram de mãos dadas até a margem do rio onde esperava por eles a rainha que tinha desencantado com a morte da bruxa Zulaia.

O engraxate levou as duas mulheres para o castelo. O rei ficou imensamente feliz ao ver a rainha e a princesa. Como havia prometido ao rapaz deu-lhe todo o tesouro que tinha. Mas, o engraxate não queria o tesouro, queria Betina. E Betina queria aquele jovem desajeitado e tolo.

O rei cumpriu com a sua segunda promessa. Permitiu o casamento de Betina com o engraxate. E no dia do casamento houve muita festa e alegria no reino.

Uma luz intensa entrou pela janela levando Betina e o engraxate para um lugar silencioso e cheio de estrelas. E eles foram felizes para sempre.

FIM