Um conto de Rosângela Trajano

Era uma vez uma menina de mais ou menos dez anos de idade com olhos redondinhos e cabelos cacheados e ruivos. Não gostava que a chamassem de menininha, mas de meninona, porque se achava uma gigante em tudo o que fazia, e era mesmo uma gigante e vocês vão saber o motivo daqui a pouco. Tinha um gato chamado Bilu que miava bastante quando queria ir para o seu colo. Coisa que Bilu sempre pedia miando.

A menina sofria de esquizofrenia. Desde os três anos de idade que via monstros. E quando cresceu mais um pouquinho começou a imaginar que tinham pessoas a perseguindo por todos os lugares. Foi difícil a vida escolar até descobrir o que tinha. Vivia trocando de escola porque achava sempre que a professora era a sua inimiga, ou seja, não gostava dela. Outras vezes cismava  que um amigo ou amiga estava aprontando algo para ela. Um dia, quando tinha seis anos de idade, teve o seu primeiro surto e subiu na árvore de frente à sua casa achando que era um passarinho.

As coisas que a menina fazia começaram a assustar os seus pais e familiares. Era preciso fazer alguma coisa por ela. Costumava ficar muito tempo trancada no seu quarto brincando com as suas bonecas e não interagia com ninguém. Passava muito tempo sozinha. Não conseguia fazer amigos. Vivia num mundo só dela. E tinha manias de perseguição. Aos sete anos na sua festa de aniversário na hora de cortar o bolo teve o seu segundo surto psicótico e começou a gritar no meio da festa dizendo que os homens maus estavam chegando para levá-la embora dali

– Não deixem que eles me levem, papai! Por favor, não deixe!

– Ninguém vai levar você daqui, filha! Ninguém!, acalmou o papai.

Era só coisa da cabecinha da menina. Ninguém queria levá-la para outro lugar. Ninguém estava para chegar. Todos na festa ficaram assustados e começaram a achar que a menina estava ficando louca. Daquele dia em diante, passaram a chamá-la de “Maria doida”. Ela ficou triste. Andava cabisbaixa apertando o seu ursinho de pelúcia contra o corpo. O preconceito dói tanto que é melhorser apedrejada, pensava a menina. O preconceito é uma coisa esquisita que acontece conosco, todos nos julgam, mas ninguém quer saber o motivo de sermos diferentes. Se é que podemos ser chamados de diferentes!

Aos oito anos foi levada a primeira vez a uma médica psiquiatra. Era uma médica boazinha e que entendia tudo de crianças e de monstros. Ficou feliz. Pela primeira vez conseguiu falar de igual para igual com alguém. A médica que tinha uns óculos enormes e vermelhos mostrava-se atenciosa e compreensiva. Até conhecia um dos monstros da menina. E também sabia bem daquele medo que ela tinha de sair de casa e ter que lidar com um monte de gente chata. O chato é quando a gente precisa explicar o que não é necessário. O que dói mais é o preconceito vestido de ignorância.

A partir daquele dia, a menina passou a tomar uns comprimidos de cor azul, rosa, branco e amarelo. Sim, eram muitos! Eles a ajudariam a viver melhor. Os comprimidos davam muitos efeitos colaterais e a menina sentia dor de cabeça, vontade de vomitar, tonturas e tremor no corpo. Foi preciso experimentar vários outros medicamentos até conseguir achar alguns que dessem certo. O tempo foi passando e a menina só via os monstros muito raramente e não tinha surtado há muito tempo.

A esquizofrenia é uma doença muito estranha na infância, principalmente porque a criança não sabe bem a como lidar com os sintomas. Muitas vezes os monstros gostam de brincar e noutras eles querem nos matar de verdade. E também não entendemos bem por que as pessoas não gostam da gente se somos tão queridos e amados em casa. A dor da gente só quem sente é quem nos ama. A dor de uma doença mental é como um pássaro engaiolado que canta sem saber para quem. Canta porque é seu cantar, a criança chora porque não sabe o que fazer com o que sente. E sem saber direito lidar com os monstros a criança acaba falando sozinha ou gritando com medo de ser engolida por eles.

Uma doença sem cura a esquizofrenia, disse a médica para os papais da menina. Mas, tem tratamento e ela nunca deve abandoná-lo. Também não pode ficar sem tomar os medicamentos na hora certa. E é preciso praticar esportes para diminuir os sintomas. Deve dormir sempre que sentir sono, pois são efeitos dos medicamentos. E acima de tudo ser respeitada e amada por todos, isso é o que vai levá-la a se sentir bem sempre. A doença não tem cura, mas o amor pode salvá-la de muitos conflitos internos e externos, disse a médica com a voz doce.

A menina podia ser esquizofrênica, mas era criativa e inteligente por demais. Sempre tirava notas boas nas provas, sabia bem de matemática e ciências e gostava de desenhar plantas e animais. Quanto ao seu apelido de “Maria doida” continuaram a chamando daquele jeito, porém ela não ligava mais. A gente se acostuma com o passar do tempo aos nomes feios que nos inventam. A gente se acostuma com a feiura da vida, também. É preciso saber conviver com o feio e o bonito. Nem sempre tudo será igual ao que gostaríamos, era assim que pensava a menina.

Aos oitos anos de idade, ela ganhou o prêmio da Olímpiada Brasileira de Matemática e também foi a melhor leitora da escola. A menina conseguiu mostrar aos familiares, amigos e pessoas da sua rua que ter uma doença mental não faz de você um inválido, nem uma pessoa esquisita, mas com amor e carinho tudo é possível vencer. E foi assim que ela acabou com a guerra entre gregos e troianos que já durava dez anos, mandando uma boneca de pano cheia de flores para cada um deles. E quando abraçaram aquela boneca gigante as flores saíram da sua barriga perfumando tudo com paz, alegria e amor. As guerras não matam ninguém, quem mata são os homens que inventam armas. A doença mental precisa de parques e não de manicômios.

A menina conheceu o herói grego Ulisses que lutou na guerra de Tróia e levou dezessete anos para chegar em casa, vivendo muitas aventuras no caminho assim como  ela que todos os dias vivia uma aventura. Eles ficarama amigos para sempre. Sim, Ulisses prometeu ajudá-la a vencer a guerra da esquizofrênia. Ela fechou o livro ” A Odisséia” e foi brincar com Bilu, o seu gato depois de tomar um branquinho, um rosadinho e um azulsinho. Os comprimidos da vida.

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Por mais amor às crianças com transtornos mentais. E viva o janeiro branco!