Um conto de Rosângela Trajano

Era uma vez uma menina magrinha, cabelos lisos e caídos nos ombros, olhos verdes iguais graminha de campo e mãozinhas que tocava tudo com cuidado. Deixava a todos intrigados a andar pelas ruas com um pé calçado e outro não, a andar pelas ruas com um vestido pelo avesso e a carregar um gato na cabeça. Coisa de criança, diziam todos sorrindo.

A menina tinha um segredo assim como todos nós temos um ou outro e nunca contamos para ninguém porque certamente sorririam de nós. Há coisas que são incontáveis. Coisas que não podemos contar nem para nós mesmos, pois o nosso eu interior ou morreria de rir ou ficaria bravo demais conosco.

Tem gente que gosta de andar muito e conhecer lugares. A menina conheceu apenas um lugar em toda a sua vida e já tinha quase dez anos de idade. Era um quarto fechado e escuro. Um lugar feio e triste, mas ela o fez bonito e alegre. Entrava uma pequena luz por um buraco no telhado e a sombra da menina aparecia na parede de cor branca. A primeira vez que se viu tomou um susto, depois foi se acostumando e brincando com a sua própria sombra.

Passsados mais de dez anos e oito meses, a menina foi retirada daquele quarto escuro por uns homens bonzinhos que a resgataram do cativeiro. O que eles chamaram de cativeiro ela chamava de quartinho da alegria. Nem sabia por que tinha inventado aquele nome para um lugar tão feio e esquisito o quanto aquele, mas recordara-se que vivera nele mais de dez anos e tudo o que conhecia estava ali naquele lugar. Sair dele para conhecer outro mundo não foi fácil. Nem ela nunca quis. Uma coisa só é feia se a gente olhar para ela sem sentimentos e a menina amava o seu quartinho. Quando se ama um monstro ele se torna bonito aos nossos olhos mesmo que seja feio para as outras pessoas, pensou. O amor não escolher pessoas bonitas, ele acontece. Feio ou bonito é aquilo que a gente inventa só pra contrariar os nossos sentimentos.

O mundo que mostraram à menina tinha uma gente estranha. Gente que andava apressada, que não sorria, que não se abraçava, que não olhava para ninguém e que não tinha tempo para conversar

– Não perturbe ninguém, menina, disse um dos homens que a resgataram.

– Eu não vou perturbar!

– Aqui fora todos temos responsabilidades e preciamos trabalhar.

– Posso pedir uma coisa pro senhor, moço?

– Claro que pode! Desde que não seja algo difícil.

– Eu quero voltar para o lugar de onde vocês me tiraram!

– Por quê? Lá é um lugar feio! Você quer ficar sozinha e trancada num lugar escuro novamente, por quê?

– Acho que lá eu era mais feliz. Só por isso.

O homem balançou a cabeça com um ar de impaciência e voltou a digitar no seu grande computador. Ele passou horas digitando. Os outros foram embora. A menina tudo o que mais desejava era voltar para o seu quartinho onde era feliz. Por que nos tiram de onde nos sentimos bem? Perguntou para si. A vida é mesmo estranha e esquisita. Quem a compreenderia se dissesse que era feliz naquele quartinho de 2 metros quadrados, sem luz, sem ventilação e sem banheiro? A gente se acostuma rápido demais às coisas tristes, pensou. 

No fundo, no fundo, bem lá no fundo, sabia que nunca foi embora do seu quartinho. Que continuava lá, no mesmo lugar. Quem estava ali era apenas o seu corpo físico. A sua alma, o seu espírito ou como queiram chamar não tinha vindo embora do quartinho da alegria. Nele, ao menos podia ser verdadeira consigo. Naquele mundo esquisito de muitas paredes, luzes e gente as pessoas precisavam fingir alegrias para não serem criticadas, para não serem odiadas e, pior, para não serem abandonadas

– Moço, você é feliz?

– Você de novo com perguntas tolas. Claro que sou feliz.

– Você é feliz aqui ou lá fora?

– Em todos os lugares, menina chata! Não vê que estou ocupado? Fique quietinha. Logo você irá para um lugar cheio de outras crianças iguais a você e esquecerá daquele lugar feio e sujo onde lhe colocaram a vida inteira.

– Eu não quero conhecer outros lugares, moço. Eu quero voltar para onde estava. Será que você não me entende?

– Por que faz tanta questão de voltar para um lugar tão feio?

– Porque eu era feliz lá! Aqui eu não estou me sentindo feliz.

– É uma questão de tempo. Logo você estará pulando de alegria com outras crianças da sua idade. Tenha calma.

O homem voltou a digitar. A menina foi à janela. Viu muitos carros na avenida e lá longe uma gente com roupas coloridas andando apressada. Ficou a pensar se toda aquela gente estava no lugar certo, se elas eram felizes onde estavam ou se fingiam alegria só para não perder empregos, reinados, esposas, maridos, dinheiro e até mesmo amigos. Ela nunca teve um amigo de verdade. Sempre foi amiga da sua própria sombra e estava sentindo sua falta. Ao pensar na sua sombra, a menina voltou-se para o homem e fez-lhe um pedido

– Moço, desliga a luz da sala, por gentileza.

– Para quê?

– Para eu ver algo.

O homem atendeu ao pedido da menina e apagou a luz da sala. De repente, formaram-se duas sombras na parede de frente a eles com a luz que entrava pela janela e ela riu ao brincar com as duas sombras. O homem achou engraçado e começou a fazer gestos movimentando a sombra de uma forma que animoua a menina. Neste instante, ele descobriu que parte dela continuava no cativeiro e seria preciso muita paciência para que se acostumasse ao novo mundo para onde a trouxera

– Você vai ser feliz aqui fora, menina.

– Como sabe? Estou com saudades do meu quartinho.

– Sim! Eu entendo a sua saudade. Depois de um tempo a gente se acostuma com as coisas ruins também. Mas, logo você terá uma vida mais bonita.

A menina pegou na mão do homem e apertou-a contra o seu peito

– Está sentindo o meu coração, moço?

– Sim, estou! Parece apressado! Por que se você está parada?

– Porque ele está vendo as sombras e quando a gente lembra de algo que deixou para trás parece que o coração não gosta.

O homem tirou a mão do peito da menina, apressado, acendu a luz da sala e falou com a voz brava

– Esqueça de uma vez por todas aquele lugar feio e sujo! Está me ouvindo bem? Nunca mais você voltará para lá!

– Eu não preciso voltar, moço!

– Como assim?

– É que eu nunca saí de lá! Eu nunca fui embora de lá! Eu continuo naquele lugar.

– Você está querendo me enlouquecer, menina! Quem está aqui comigo agora não é você? Por acaso você é duas em uma?

– Eu fiquei lá, moço. Aqui está só o meu corpo vazio e nada mais.

A menina começou a chorar e o homem voltou a digitar, apressado. Não vamos embora quando amamos um lugar. Ela amava o seu quartinho apesar de feio e sujo. Como a sua sombra faria cocô para ela ver agora? Como a sua sombra ficaria de pernas para o ar para ela ver agora? Quem a ouviria gritar sem reclamar? Não, não se vai embora quando se ama. É melhor ficar mesmo que o lugar seja feio e sujo. Mesmo que não haja luz. A gente constrói um mundo melhor quando é mais feliz. O mundo para ser bonito tem que primeiro ser bonito dentro da gente, refletiu a menina sentada na poltrona confortável da sala do homem. E ali mesmo dormiu para acordar dentro do seu quartinho escuro, sujo e feio. Às vezes o que a gente sonha torna-se realidade. Mas, só às vezes.