Um conto de Rosângela Trajano

Era uma vez uma menina buchuda, dentuça, cabelos cacheados e olhos estrábicos. Podia-se ser chamada de uma menina feia, mas como não existem crianças feias para mim ela era a coisa mais linda do mundo com o as suas mãozinhas fofas e pezinhos inquietos. Mas, ela era uma menina triste e isso me deixava intrigada

– O que te faz triste, menina?

Perguntei muitas vezes para ela, porém não obtive resposta e se obtive a ignorei como faziam todas as pessoas que ela conhecia. Ninguém quer ser ignorado. As pessoas de hoje em dia fingem que nos dão atenção, mas elas só fingem, na verdade elas não estão nem aí para as nossas dores, sentimentos e emoções. Elas querem mais é que desapareçamos das suas vidas para viverem mais felizes sem ter que carregar um peso nas costas de uma menina chata que fica cobrando atenção o tempo todo.

A menina demonstrava ser uma fortaleza o dia inteiro, uma gigante, um soldado em batalha contra as suas próprias emoções. Ninguém queria saber dela. Ninguém lhe perguntava se estava precisando de algo, qualquer coisa que fosse, um carinho, um abraço, uma palavra de conforto, nada. As pessoas ao seu redor estavam todas doentes, diziam para ela, e assim não podiam lhe dar a atenção que tanto necessitava. No fim do dia, aquele soldado estava todo mutilado e sangrando por dentro ou aquela fortaleza tinha perdido parte das suas paredes. Foi na poesia que a menina encontrou esperança, amor, serenidade, resiliência e amizade. Tornou-se amiga da sua própria poesia. Mas, era duro não ter alguém de carne e osso com quem conversar um pouco vez ou outra. E ela sofria um bocado com aquilo. Mandava mensagens pelo seu aparelho celular o dia inteiro para milhões de pessoas, mas ninguém lhe respondia. Diziam estar ocupados, diziam não ter tempo para nada, davam quaisquer desculpas para não falarem com ela.

Tem gente que nos faz de tolos, tem gente que acha que somos robôs, tem gente que só diz que nos ama quando precisa de nós, tem gente que só é nosso amigo quando estamos felizes, e dessa gente toda a menina tomou um abuso tão grande certo dia que disse um monte de desaforos para ela, chutou o pau da barraca, derrubou o balde com água, sujou a roupa do varal, falou tanta coisa que machucou até quem não queria. Brigou com o mundo inteiro neste dia, a menina. Tudo tem limites. Pessoas que ela tanto admirava e respeitava faziam de conta, só de propósito, que ela não existia. E o que era pior, que tudo o que ela escrevia ou desenhava eram coisas tolas e não deviam ser levadas a sério.

Vai chegar um dia que a gente vai explodir com tanto desprezo. Foi o que aconteceu com a menina. Ela foi inchando, inchando, inchando e como bola de aniversário explodiu no dia 16 de janeiro de 2023, às 21h30min. É preciso deixar marcado o tempo para que não esqueçamos que a menina viveu mais de 51 anos e ainda assim se achava apenas uma menina buchuda e dentuça de olhos trocados abandonada à própria sorte pelos amigos e familiares. Muitas vezes, a menina pensou que dava tanto de si para o outro, que era tão legal para com as pessoas e não entendia o motivo delas a ignorarem assim à céu aberto no meio do dia ou da noite. A menina disse umas coisas bem-ditas para aquela gente chata e mentirosa, porque amigo de verdade não deixa o outro falando sozinho. Sim, amigo de verdade estar junto em todos os momentos sejam eles de felicidade ou tristeza. Todo mundo tem problemas, a menina tinha muitos, a menina via monstros e nem por isso ela ficava de cara feia para todo o mundo.

O dia mais difícil da sua vida foi aquele 16 de janeiro. Muito mais difícil do que ser largada numa praia deserta a noite inteira com frio e medo de ser morta por um monstro de verdade. De repente, a menina se deu conta que quem mais fazia com que os seus monstros aparecessem eram aquelas pessoas chatas e mentirosas com as suas ignorâncias e desprezo por ela. Desprezo que mata aos poucos, que vai destruindo o que de mais bonito tem dentro da gente: o amor. Contudo, parece ser fácil encontrar amor hoje em dia. É só entrar numa loja de tecnologias digitais e pedir uma porção de amor, não é mesmo? A menina morreu um pouco no dia 16 de janeiro de 2023, mas ela queria ter morrido de uma vez.