A menina e o pato

Rosângela Trajano

Era uma menina que tinha vindo lá das bandas do continente africano, acho que de Moçambique. Veio com a chuva e trouxe com ela um pato.
A menina abraçava o pato todas às vezes que alguém o ameaçava levar à panela. Ela bem sabia o que era vida sofrida, pois de onde vinha seu povo fora um dia escravizado pelos colonizadores que levaram as suas riquezas naturais, colocaram correntes nos pés e pescoços dos seus avós e os levaram para bem longe. Aquele pato era a única coisa que a menina tinha na vida, seus pais viraram poesia numa tarde de intenso tsunami. Salvaram-se ela e o pato. Dizia a menina que a sua terra tinha bruxos e feiticeiros, lobos e zebras, como nunca vi nada disso por aqui pedi para que os desenhasse para mim, fez uns traços tortos, três círculos e disse “aí estão”. Fingi ver loba, zebra e bruxo. Enfim, a menina com seu pato a andar pela multidão de laços líquidos não sabia como veio parar na minha cidade, atravessou o oceano nas costas de um gigante de um olho só que a deixou na beira da praia. Cuidar de um pato na tenra idade e sozinha era muita responsabilidade, ainda mais em tempos de existencialismo em que seu pato se achava um rei sem súditos e, por isso, chorava. A menina e o pato queriam voltar para casa, mas não sabiam como. Em Moçambique, o pato seria um rei de verdade e a menina se juntaria a centenas de outras crianças iguais a ela, ou seja, donas de um pato e mais nada.