Rosângela Trajano

Hoje eu ri de mim

Das coisas que faço

E depois desfaço

Das gavetas que arrumo

E logo estou a desarrumar

Do pranto que escondo

E estou a chorar

Ri das minhas ilusões

Desses sonhos belos

Que temos às vezes

E que ficam aprisionados

Nos nossos medos de ser ridículos

Aos olhos alheios

E ser ridículo não é demasiado triste

Ridículo é o não sentir a vida

O não querer sorrir

E eu ri de mim para mim

Sozinho na minha casa de telhado frágil

E todas as palavras que eu digo

São julgadas ridículas

Mas ridículos são aqueles

Que não riem de si

Ri, ri, ri das minhas tentativas em vão

De acender o fogo sem fósforos

De acender a lâmpada queimada

De acender a noite sem a lua

O ridículo é o não colocar-se diante de si

É prestar contas ao rosto alheio

Desfazer-se de seus sentidos só para não senti-los

Na complexidade que são alguns sentidos

Fogem-nos a coragem de sentir o que sentimos

Ri dos covardes que me disseram não rir

Da lágrima que caiu no final da tarde

Da lembrança que chegou ao amanhecer

Do presente de aniversário que não veio

Ridículas são as criaturas que não riem de si

E eu queria sentir a vida em mim

Renascer nas manhãs de outono

Quando o pássaro ri da sua solidão

Em cativeiro inusitado da razão.