A pequena juíza

Rosângela Trajano

A pequena juíza

Quando escrevi esta história, há mais ou menos cinco anos, eu jurava que tinha uma amiga juíza. Mas ela me julgou por não ser boa amiga, acho eu, pois lhe dei motivos para isso, e nunca mais vi a pequena juíza.

– Como você julgaria um cachorro que se finge de morto todas as vezes que você briga com ele?

– Hein?

– Como você julgaria um cachorro que se finge de morto todas as vezes que você briga com ele?

– De onde você vem?

– Ah! Isso não importa.

– Como se chama?

– Isso também não importa.

– É possível!

– O que está fazendo aí em cima?

– Estou ocupado.

– Ocupado com o quê?

– Preciso fazer um julgamento. Isso é muito sério.

– Eu adoro brincar de julgar! Vivo julgando o meu cachorro! Me deixe julgar com você.

– Não posso. Julgar não é brincadeira. É coisa séria.

– Pois, pois. As brincadeiras também podem ser sérias.

– É possível.

– Acontece que é muito difícil julgar uma coisa que a gente tem no coração.

– Entendo. Por isso não consegui realizar ainda meu julgamento.

– O que você tem de julgar?

– Eu preciso julgar o silêncio.

– Isso é muito sério mesmo! Por quê?

– Porque ele calou o mar faz algum tempo e assim eu não posso reger mais minha orquestra.

– E você é um maestro?

– Sou, sim. Todo esse marzão era minha orquestra.

– Então ordene que toque para mim.

– Não posso. O silêncio obrigou o mar a ficar mudo.

– E você não fez nada?

– Fazer eu fiz, mas ninguém quis conciliação.

– O que é conciliação?

– Ninguém me ouve mais. Ninguém me ouve mais.

– O que é conciliação?

– E eu perdi minha orquestra maravilhosa.

– O que é conciliação?

– É quando as partes fazem um acordo amigável.

– Ãnram! Então eu preciso fazer uma conciliação com o meu cachorro.

E a pequena juíza lembrou-se de que tinha brigado com o seu cachorro, porque ele comera o seu estofado novo. E os dois estavam de mal. Com raiva, ela julgou que ele era o cachorro mais feio do mundo, e ele ficou lá se fingindo de morto. Enquanto ela saiu à procura de um cachorro mais amigo.

– É bem possível – falou o maestro.

– Por que o silêncio mandou o mar ficar calado?

– Porque ele disse que o barulho do mar estava incomodando as pessoas, os animais marinhos, as praias e até mesmo o vento.

– Mas ninguém pode mandar o outro deixar de fazer o que gosta.

– Não mesmo.

– O que você está fazendo?

– O mar finge que faz barulho e eu finjo que rejo.

– O que é fingir?

– É preciso de vez em quando saber fingir.

– O que é fingir?

– É inventar que tudo é de verdade.

– Sim, eu também gosto de fingir alegria, principalmente quando fico triste.

– Por que finge?

– Pra ser menos triste.

– É possível.

– Você vai ficar aí em cima até quando?

– Até minha orquestra voltar a tocar.

– Por que não chama o silêncio e o mar para fazermos um julgamento?

– Você me ajudaria?

– Na minha vida toda eu só precisei julgar um cachorro e nunca consegui de verdade, porque ele mora no meu coração. Mas como eu não tenho laços nem com o mar nem com o silêncio. Acho que sim.

– Eu não posso fazer isso sozinho.

– Eu posso tentar ajudar você.

– Bom. Muito bom. Podemos começar agora mesmo.

E o maestro ficou quieto enquanto a pequena juíza fazia o julgamento. Após certo tempo ele começou a falar, falou pelos cotovelos.

– Quando é que vamos começar o julgamento?

– Já começou, maestro.

– Já?!

– Sim. Estou negociando com as partes.

– Não estou ouvindo nada.

– É preciso aprender a ouvir o silêncio.

– Como vou ouvir uma coisa que não fala?

– O silêncio é o som dos seus sentimentos.

– Como vou ouvir uma coisa que não fala?

– Fique quieto. Vamos escutar nossos sentimentos. Assim será fácil julgar o silêncio.

Enquanto realizava o julgamento entre o silêncio e o mar, a pequena juíza ouvia os “aus”, “aus” do seu cachorro e o rabinho a balançar de alegria, quando ela chegava a casa. Estava sentindo falta dele. E era muito bom poder voltar para casa e encontrá-lo fingindo-se de morto, pois julgaria que ele era o cachorro mais bonito do mundo. Mais nada.

– Terminou! Conseguimos fazer uma conciliação! – falou a pequena juíza.

– Eu não fiz nada. Fiquei quieto o tempo todo.

– Você me ajudou muito. Convenceu o silêncio de que sentimos falta de alguns barulhos às vezes.

– Então agora o mar pode ora fazer barulho ora ficar em silêncio? Cada um tem seu tempinho?

– Isso mesmo.

– Está ótimo! O mar e o silêncio estão contentes.

– Estou sentindo falta do latido do meu cachorro.

– Sim! Sim! Sim! E eu do meu mar.

– Então ordene que ele toque.

– Não posso, minha pequena juíza. É preciso saber esperar.

– O que é esperar?

– Esperar é esperar só isso.

– O que é esperar?

– O que você faz quando seu cachorro está dormindo e quer brincar com ele?

– Eu fico ali, perto dele, até que acorde.

– Então você fica esperando.

– Ah! Então eu espero meu cachorro acordar todas as manhãs.

– Isso mesmo.

– Pois, pois. Vamos esperar pelo barulho do mar.

– Olhe! Aí vem ele!

E foi um barulhão que o mar começou a fazer com suas ondas indo e voltando para lá e para cá.

O maestro subiu em cima da cadeira e de frente para o mar, com a sua batuta, começou a reger sua orquestra que fazia um belo concerto para pequena juíza.

Enquanto o maestro regia o mar, a pequena juíza decidiu voltar para casa. Tinha um cachorro latindo atrás dela.

– Ei? Para onde você vai?

– Para casa.

– Não vai terminar de ouvir meu concerto?

– Não posso.

– Por quê?

– Porque tem um cachorro me chamando.

– Ah! Deixe ele pra lá. É só um cachorro!

A pequena juíza abriu a boca espantada.

– Só um cachorro? Você diz que o meu cachorro é só um cachorro?

– Como são todos os outros cachorros comem ração e latem.

– Meu cachorro é diferente dos outros cachorros!

– O que ele tem de diferente dos outros cachorros?

– Ele é meu amigo. Ele gosta que eu brinque de julgá-lo preso de noite e solto de manhã.

– Que coisa mais sem graça!

– Sabe, você não é um homem, você é um caju.

– É possível.

A pequena juíza entrou no seu carrinho de brinquedo e voltou para casa atrás do seu cachorro.