Rosângela Trajano

Colocando vírgulas na contação de histórias

Contar uma história é a arte de acrescentar sempre algo mais. O contador de histórias se diferencia do autor porque tem a oralidade e com ela pode criar mundos a partir do que foi escrito. Quem conta uma história nunca conta do mesmo jeito na segunda vez. Há sempre acrescidas vírgulas e mais vírgulas. É como se o contador não quisesse finalizar aquele momento mágico de transe seu e do público ouvinte. As vírgulas vão povoando o mundo do faz-de-conta, criando vozes e imagens. Elas dão tempo para o contador pensar numa nova ideia, num novo gesto, numa nova onomatopeia, num novo canto e mais ainda elas ajudam na respiração e nas batidas do coração do público.

Quem conta uma história é porque dela gosta, quem ouve também. Nas minhas contações de histórias muitas vezes usei o “aí” para substituir as vírgulas. O “aí” pode ser um termo não aconselhável pela língua portuguesa para contar histórias, porém é o que mais me aproxima do ouvinte. Das recordações que trago das contações de histórias que ouvi da minha bisavó e da minha mãe o “aí” estava sempre presente. Enquanto na escrita o autor necessita ser gramaticalmente correto na pontuação, na oralidade são as vírgulas substituídas pelo “aí”. Atualmente o “aí” ganhou sinônimos, pois os contadores de histórias se especializaram e agora saem das universidades, são pós-graduados, o “aí”, velho substituto das vírgulas, agora é o “então”, “logo”, “mas”, “conseqüentemente” e etc. Gosto do “aí”, pois para mim contar histórias é uma arte que está sempre ligada as velhas tradições: casinha de sapê, fogueira de lenha e cacimba.

Penso que as vírgulas dão mais vida à história. É como um peixinho que volta e meia sobe para respirar, assim é o papel das vírgulas para o contador de histórias que volta e meia precisa recordar algo, pois o que é contado está guardado na memória que é uma espécie de depósito organizado onde as informações estão guardadas. As virgulas dão um descanso em milésimos de segundos para o contador escolher qual o próximo argumento a ser contado. O bom contador de histórias pede autorização ao autor para retirar os pontos finais e colocar as vírgulas, como uma colcha de retalhos sai contando uma história atrás da outra.

A contação de histórias é uma narrativa oral do contador com o público em que para ouvir bem é necessário quem conte ter o cuidado com a voz e seja um colocador de vírgulas para o momento de reflexão da história, para a criação do rosto do herói, para o resgate da princesa no cavalo branco, para empurrar a bruxa no caldeirão. As vírgulas estão presentes no momento do sorriso, do olhar, do espanto e da admiração. Quando o contador de histórias imita a voz do personagem coloca vírgulas nos diálogos através das frases usuais na oralidade “foi mesmo”, “e agora”, “quem foi”, “onde vamos”. As vírgulas na contação de histórias são pausas para o pensamento do contador e do ouvinte. Quem coloca vírgulas nas histórias amplia o espetáculo e dá mais amor a quem está escutando, pois quanto mais se ouve, mais se aprende a ser atencioso.

Certo dia contei uma história que dizia mais ou menos assim: aí o peixinho pulou, pulou, pulou…aí nadou, nadou, nadou…aí cansou foi dormir e aí sonhou, sonhou, sonhou… aí ao acordar borbulhou, borbulhou, borbulho…aí o peixinho vive, vive, vive num rio gigante, gigante, gigante…aí o peixinho dança, dança, dança…aí faz glup, glup, glup…aí toma água peixinho….Foi essa a história que não quis terminar de contar e levou cerca de quase duas horas. Contei para crianças que moram próximas de um rio infelizmente poluído e elas não queriam ver o peixinho morrer, porque logo ele se encontraria com a poluição e com as minhas vírgulas o peixinho sempre encontrava algo que evitava esse encontro.

Assim sendo, as vírgulas constituem fortes ferramentas ao contador de histórias e ao seu ouvinte, seja dando paradas para respirar, seja dando paradas para sorrir, o que importa é que todos nós saibamos que contar uma história exige um uso exagerado de vírgulas. Enquanto no livro escrito a história tem cinco ou seis páginas, na oralidade ela vai ter um mundo sem fim, um infinito mundo de “aís”.


Rosângela Trajano é licenciada e bacharel em filosofia e mestra em literatura comparada.